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30 de abr. de 2012

A DOENÇA MENTAL E AS ÉPOCAS

 Texto de Moacyr Scliar
 "Doença mental tem história. É o que mostra, com brilho e competência, Isaias Pessotti (professor de psicologia da USP em Ribeirão Preto) em "A Loucura e as Épocas". E a história da doença mental tem fascinado e motivado vários autores –a obra de Foucault vindo imediatamente à lembrança.
Só que Pessotti (que foi o ganhador do prêmio Jabuti de 1993, com o romance  Aqueles Cães Malditos de Arquelau) evitou a abordagem historiográfica clássica. Preferiu um enfoque mais original e mais fértil: "o levantamento de trechos expressivos de várias obras que se ocuparam explicitamente em caracterizar ou explicar a loucura". Os textos são agrupados segundo temática e cronologia. Correspondem mais ou menos à divisão da história que aprendemos no colégio –antiga, medieval, moderna e contemporânea.
Pessotti, porém, não se limita a fazer um relato factual. Vai mais fundo, bem mais fundo. Na primeira parte (Antiguidade), recorre a Homero e Hesíodo para mostrar como, segundo a "Ilíada", "os deuses podem transformar em néscio o homem mais sensato". Para Homero, diz Pessotti, o modelo da loucura é mitológico, teológico: "Os heróis homéricos não enlouquecem, são tornados loucos pelas decisões da divindade".
Caberia a Freud, analisando o Édipo, mostrar que a "divindade" é apenas uma parte do nosso aparelho psíquico. Antes disto, porém, Hipócrates desmistificaria o caráter sagrado da doença. Doenças como a epilepsia, diz o "pai da medicina", "foram sacralizadas por (...) magos, purificadores, pedintes e charlatães".
A medicina grega foi incorporada pelos romanos, dentro da orientação hipocrática. Para Galeno, a doença mental afeta uma das três capacidades da alma: a fantasia (phantastiké), a racional ou a mnemônica. Como exemplo da primeira, ele cita um melancólico que "se imaginava feito de conchas e (...) evitava todos os transeuntes, com medo de ser esmigalhado."
Do ponto de vista médico, a Idade Média é um período de estagnação. Os deuses que Hipócrates tinha desmoralizado como causa de doença mental reaparecem sob a forma dos demônios, temidos pelos primeiros cristãos e que ocasionam, diz o eremita Atanásio, "o desejo de coisas perversas, o enfraquecimento da virtude, a instabilidade do comportamento."
No fim da Idade Média, surge o manual que vai ensinar inquisidores e eclesiásticos a lidarem com a possessão diabólica: o famoso "Malleus Maleficarum". Muitas bruxas foram queimadas por causa da perseguição religiosa. Que tinha uma razão histórica: o ocultismo muitas vezes desempenhava um papel subversivo –era o disfarce sob o qual se apresentavam as idéias da modernidade. A alquimia introduzia a química, a astrologia era precursora da astronomia –e a bruxa, mulher desabrida e desafiadora, antecipava a liberalização dos costumes na Renascença.
A Idade Moderna vai medicalizar a doença mental. No século 17 surge o conceito de alienação, que possibilitaria, por sua vez, a emergência do alienista, tão bem retratado por Machado de Assis. O  alienismo significa autoritarismo e, ainda que a loucura seja considerada, dentro da linha hipocrática e galênica, um fenômeno natural, o resultado final é o confinamento: como diz Foucault, já não se podia mais tolerar o louco vagando pelas ruas, dando mau exemplo àqueles que eram obrigados a trabalhar.
O gesto misericordioso de Pinel, liberando os doentes mentais das cadeias (uma consequência dos ideais da Revolução Francesa) não foi suficiente; embora se multiplicassem os diagnósticos –chegando a uma verdadeira fúria taxionômica–, os recursos terapêuticos continuavam constrangedoramente pobres. Procurava-se, por exemplo, "chocar" o paciente, jogando-lhe água fria ou simulando arrojá-lo do alto de uma torre.
Com Pinel, termina "A Loucura e as Épocas", que já nos faz antecipar uma continuação. Particularmente, li este livro com tríplice prazer: como curioso, como médico e como escritor. Trata-se de uma obra que dá nova dimensão ao tema, valorizada inclusive por boas ilustrações.”